Viagens por aí a dentro

sábado, agosto 06, 2005

Braga-Viana

Empreendi uma aventura para alguns, que é desafiar o feudo das transportadoras rodoviárias, e lançar-me numa viagem de comboio de Braga a Viana do Castelo a um Domingo. Deu para sentir e palpar a verdadeira despojação da cidade. Sem gentes às 7 horas da manhã de um Domingo, parece (e é pela temperatura) muito mais fria e impessoal. A manhã está fria. O sol ainda não nasceu. Entro no comboio que agora faz o percurso inverso ao de quase uma semana. Saio em Nine. O caminho até lá é o tipíco minhoto, já fora da franja de Braga. Anotam-se homens a mondarem o seu socalco de terra, mesmo à beira da linha. Como o sol ainda teima em despontar totalmente, o frio ainda se sente, e a neblina morre nos vales. Só depois, devagarinho, no cume dos pequenos montes os raios lambem os cimos das árvores e os cimeiros das igrejas.

Paro em Nine, com um cheiro a campo e estrume característico, com montes de cultivo a fazer tudo verde. De soslaio, raspo de um corrimão o gelo que se formou durante a noite. Senti-lo a desfazer-se entre os dedos é revigorante, embora pouco ajude a colmatar o frio. Vem pessoas e veem as conversas com sotaque carregado e histórias do dia-a-dia. De pessoal na estação nem sinal. Só a voz gravada de antemão. O Internacional vem aí para me levar ... vou-me deixar ir.

A viagem é curta – menor do que a espera em Nine pela ligação – agradável e esguia. Passando por tudo o que é verdejante e viçoso, vinhedo e rio.

Chegados a Viana - um pouco de tempo depois do horário, visto pelo caminho de via única ser necessário fazer a espera pelas composições que vem em sentido inverso - convém visitar o que de lá por bom e mau se tem.

O elevador que nos levaria – e digo levaria por isso mesmo – ao cimo do Monte de Santa Luzia encontra-se segundo os guias desactivado para obras. Já lá vão 3 anos de abandono e nem sinal de obra. Só despojo e um cenário de horror funicular. Somos então compelidos a ir de escadas, táxi ou carro próprio. O escadório faz-se bem com paciência e descanso q.b. . O que é inverossimil é deixar um património e motivo de interesse, desfalecer assim sem o mínimo de cuidado. Que fique isto para pensar nas opurtunidades que temos para desenvolver, e perdidas como são não há queixa que o valha...

A paisagem do topo é bem abrangente o Sul, Este e Oeste da região de Viana: Montes e Vales, mais montanha e mar. Viana como um enclave de fronte para o Porto, porto de pesca a Norte e acolhedor de iguarias, legumes e ares campestres do interior Sul, Norte e Este. Uma confluência que é tipica deste tipo de cidade à beira-mar plantada, que beneficia ainda da foz de um rio navegável, que outrora, antes da escalada do asfalto serviria de estrada para o interior.

Viana tem o ponto máximo aqui em Santa Luzia, e subindo ao zimbório pode-se apreciar, embora num espaço apertadíssimo, toda a envolvente da cidade. Da cidade histórica em si, uma volta aos olhos pelo centro serve tanto do que uma visita guiada, uma vez que nos sitios mais centrais tudo se encontra identificado devido ao esforço camarário que ajuizadamente identifica os monumentos mais pitorescos com uma pequena sintese da sua história e conteúdo.

Sinal mais para o navio Gil Eanes, cuja história atribulada está contada na doca da cidade. Se não fosse o esforço externo a nave estaria agora a ser desfeita em milhares de bocados. A iniciativa conta com uma pousada e aproveitamento para alojamento de diversas instituições. Um exemplo de reabilitação a seguir, que, no entanto, deverá ser ainda mais cuidada.

Após uns grandes passeios pela urbe, passe-se pela praia do Norte, que, não obstante as pequenas ondas e areal, sempre ajuda a descomprimir. Outra vez, aconselha-se o passeio ao Deus dará pelas artérias da cidade. Trás mais benefícios do que se julga...

De volta, e autocarro tomado de volta à base é hora de passear por mais umas curvas e serranias pelo meio de terreolas, umas maiores, outras mais pequenas mas sempre com o seu encanto.

Braga espera-me para um último sono que nas próximas vezes terá que ser repartido por este Minho de tantas terras mas sempre verdinho.

Cumprimentos para todas as pessoas que conheci nesta viagem deambulatória pela região, especialmenta para este pessoal:

Flávia (Brasil)

Steven (Nova Zelândia)

Marta e Sebastien ( Polónia e França)

Wilson (Brasil)

Joaquin, Ruben & Eduardo (Espanha)

Michael (Alemanha)

Braga - Barcelos

Barcelos não tem nada de mais que possa ficar por ser visto. Talvez para quem seja um fã incontestável dos “recuerdos”, um galo de Barcelos, em versão mini-porta-chaves, ou para os mais emperdenidos, versão maxi-porcelana, venha mesmo a calhar.

Aqui, assim como nestas zonas límitrofes respira-se o fumeiro. O cheiro inconfundivel do enchido pendurado a fumar, penetra e entranha-se na alma, roupa, e narinas.

Há coisas que me tocaram e chamaram. Chamamentos bonitos como o belo enquadramento da Ponte sobre o Cávado e o rio em si que até lhe dá vontade de tocar.

Toquei na beira do Cávado... mesmo à beirinha perto da ponte, junto a uma azenha em recuperação. Ele nada me disse. Apenas frio, e se calhar incomodado com o esgoto (pelo cheiro e cor, de certeza não tratado) que desemboca na margem contrária em Barcelinhos. Ou isso, ou ficou incomodado com as 2 pedras que com o intuito de ricochetearem, logo se afundaram. Palerma do Rio! Talvez por se ter habituado a que ninguém o socorra quando lhe é devido, também a nós não responde. Cá se fazem cá se pagam!

Outros chamamentos, embora menos líquidos e mais ecléticos encontram-se no Museu de Olaria de Barcelos. Sempre com exposições variadas, temporárias e fixas, a “pagantes” e a não pagantes – sempre nos podemos aproveitar do estatuto e dar uso do empoeirado cartão de estudante, que só sai cá para fora em questões de identificação e descontos secundários e pagar uma quantia irrisória – surpreende quem visita e pensa que o barro apenas pode ser castanho e servir apenas para “recuerdos” mais ou menos foleiros.

Talvez o que me tenha mais apegado e chamado a atenção tenha sido o mercado que se realiza quase religiosamente todas as quintas-feiras e que ocupa toda a praça Central. É uma excelente oportunidade de sentir o pulsar do Minho e das suas pessoas. Ver e sentir os velhos, os novos, os seus falares – carregados amíude de palavrões capazes de fazer corar um Mouro, mas que não tirados dos seus contextos não chocam ninguém – e o suburbanismo nada stressado que inveja traz-nos a suburbanos da Capital.

De volta ás viagens, tempo de voltar à base estabelecida na Capital de Distrito.

Há rapazes que ajudam motoristas de autocarros. Quiçá um começar de vida onde nada mais há para além do que um livro pode valer.

Há a neblina a pairar nos vales, fazendo lembrar a nata que soubeja do leite, mal caiem os primeiros frios da noite. O Sol já nada quer com isto. Só a Lua ténue me acompanha, a mim e nós todos que voltados para Braga apinhados num autocarro nesta hora de ponta Minhota. Nos campanários das igrejas dos lugarejos brilham umas verdes cruzes. As casas aninham-se penduradas nos inúmeros montes que populam a região. Umas penduradas, outras nem tanto.. soltam uma névoa que se estaca após subir brownianamente uns poucos de metros. Se são de uma lareira estas névoas, que inunda uma qualquer sala de família, ou se por outro provém de um fumeiro, ao certo eu não sei. Sei é que contribuem para as grandes névoas que se formam nos vales, como numa casa de vício de jogadores inveterados.

A vida vai tão pacata mesmo ás portas da Urbe que até dá direito a empatar um pouco o trânsito na estrada nacional, à conversa com um amigo motorista, quem sabe se a por em dia o resultado do jogo de ontem do clube do coração.

A diferença da génese das grandes e das pretensas grandes cidades vê-se num facto que todos consideramos impessoal: a frieza das pesssoas. Aqui cada um conhece o outro no autocarro, na loja, onde quer que seja, seja numa Braga, numa Barcelos, e quiçá numa Guimarães...

Após uns estafantes 55 ou 60 minutos de viagem, espera-me de volta o pulsar citadino à séria, que aqui aparece e re-aparece vindo do nada...

O Sameiro à noite é fabuloso, não pela sua beleza arquitectónica, que a tem, nem pela sua imponência cimeira, mas pela vista magnifica que se tem do vale de Braga e das populações circundantes. É de suster a respiração e de parar o bater do coração com a majestade das luzes, pelo frio cortante e pelo silêncio que ajuda à meditação.. desde que não seja entrecortada por tilintar metálico.

Porto- Braga

À sombra de 4 dias, das árvores da Praça do Municipio, e de outras tantas peripécias e passeios novos, vem a imagem e luz da viagem de comboio. Moído de tão grande façanha de atravessar meio e mais um pouco de país de mochila ás costas e saco de viagem pendente na outra, lá me arrasto para a compra de bilhete. Nada demais, já que quem viu as máquinas suburbanas de Lisboa, viu todas as que populam por aí, neste rectângulo, uma vez que a Refer, está uniformizando tudo, lembrando os outros tempos, tempos esses em que as estações todas elas brancas e debruadas a azulejo, com o seu ar provinciano e rude, de casinha humilde de campo. Hoje, idade do aço e betão revestido a vidro, fazemos como nos tempos modernos: abraçamos, acolhemos e escondemos o antigo por debaixo do novo. Com sorte num tempo futuro um dia ainda consigamos resgatar de uma vala arqueológica aquele pequeno pedaço de azulejo do século XX.

Os comboios ditos suburbanos seriam iguais aos que asseguram o serviço até Sintra, pensava eu. Saiu o tiro pela culatra... já deveria estar premonido uma vez que já tinha avistado uma composição em Aveiro, cujo ar aparentemente frágil, “clean” e quase desarticulado de (quem olha para) um eléctrico dos novos de Lisboa, não inspira confiança. Pois é, estes novos suburbanos de aspecto moderno aerodinâmico e “eletricular”, fazem diariamente a vulgar “porrada” de quilómetros nesta área do Porto. Uma área metropolitana e suburbana extenssísima quando comparada com a de Lisboa. Os 55 e os 45 quilómetros que separam Porto de Braga e de Guimarães são muito mais do que a distância de Lisboa a Cascais ou a Sintra. Salvé a suburbana área de Lisboa as cidades de Vila Franca de Xira e Azambuja, por permitirem estas aumentar o figurão da Capital.

Gostaria de fundar o chamado suburbanismo extendido, que é o que se me apraz de dizer deste eixo Porto – Braga, mais principalmente desta linha. Ao sair do Porto, nota-se um emaranhado de linhas, sucatas, ferros velhos e tudo com um aspecto feio, sujo, lugrube e pós-industrial. Para quem o conhece o estilo não é nada demais. O que mais pode chocar é a transição abrupta do estilo para o rural. Assim, num abrir e fechar de olhos... esse tal suburbano extendido funciona como uma linha ténue , que une as duas cidades, a linha de carril apenas esse pedaço de ferro a ideia de urbe. Tudo o resto à volta mantêm-se estático e rural com deve de ser. O comboio assim moderno e eléctrico e confortável, destoa na paisagem quase virgem, tão virgem quanto a linha toda renovada, recém-inaugurada e a tresandar a moderno. O modernismo rompe pelos campos e vales verdes deste Minho interior e húmido, onde a esta hora da tarde quase noite, o Sol torna-se vermelho fogo, e irrompe pelas carruagens em bloco ligadas entre sí pelos foles, enquanto quase 3 dezenas de paragens cortam o embalar.

Estações tão urbanas quanto Águas Santas e Ermesinde lembram-nos o quão perto estamos do Porto, enquanto que outras com nomes mais estranhos como Travagem, tão pessoais quanto Leandro, tão pacóvios quanto Tadim – que numa piada estúpida e sem graça pode ser estendida para Tadi...nho – ou Aveleda, e tão senhoriais e feudais como Couto de Cambeses, remetem-nos para uma ruralidade acabrunhada. Com essa ruralidade nortenha, vem-me à cabeça o sotaque tão típico das pessoas nadas e vivas aqui – ou ás vezes apenas vivas uma vez que a acostumação não raras vezes faz com que a língua adopte a convenção da Terra – que por mais frenético e estiloso seja o seu dia-a-dia, é impossível não pensar logo logo na sua tacanhês provinciana. O estereotipo está lá, eu sei, e é estupido, mas é o lidar o embate e o que o primeiro contacto fazem despelotar. É deveras um preconceito que é desfeito com o passar do tempo.

Dos passageiros deste comboio não há muito que dizer. Estava à espera de uma hora de ponta metropolitana, mas vim ao engano. Se calhar, lá atrás, no Porto, e nos seus confins, as coisas sejam assim. Aqui não; aqui o único traço que se nota é o sono mal dormido de véspera que se acumula com o cansaço, dando origem ao adormecimento. Os rostos, alguns joviais, outros mais cansados, e outros ainda típicos do bebedolas lá so sítio – daqueles que paira de tasca em tasca sem remédio – que vigilantes mas não assim tão despertos, lá se vão dirigindo para a porta, quando a voz de Bingo anuncia a estação de Paragem, saída na bola sorteada. Saio na última. Pelo volume de gente que aqui sai, vejo que a auto-estrada é uma alternativa excelente, pelo menos para quem vive em Braga e pode ter carro próprio – aqui mais imprescendível do que na capital – a fazer a ligação em 1h 40m.

Chegado a Braga, estação nova, a impressão não difere da de uma grande cidade; muito movimento, muitos carros e autocarros, um bulício e uma pulsão muito própria que quase me levou a pensar que me teria enganado no destino. Braga tem uma vida própria embora muito parecida a Lisboa em movimento. Vêem-se pessoas correndo agitadas e comércio por todo o lado . Braga é peculiar porque tenta conciliar esta vida toda em dois espaços: o velho mais religioso e o novo mais profano e capitalista. Braga vive e lida com isto muito bem, sem atropelos. As pessoas mais novas vivem como se vivessem na capital, influenciadas pelo que é moderno, como em qualquer outra cidade grande que se preze. Ajudadas também pelos ventos estudantis Universitários que obrigam ao progresso. Mas Braga também mostra virtuosamente a sua parte velha, que não entra em conflito nem se sobrepõe ou é sobreposta com todo o resto. Tem o seu lugar. O centro, no centro. Damos de conta com preciosidades e maravilhas arquitectónicas. Por vezes, e não raras, ouvimos sinos a ecoar. O seu som propaga-se por todo o espaço. Só assim é que de vez enquando se nota que é uma cidade mas uma cidade mais campestre do que todas as outras.

É indelével, a marca que a paisagem circundante deixa na urbe. Estamos num vale rodeado de montes verdes. É normal que nos sintamos numa cidade peculiar no sentido rural, mais se a isso juntarmos o sotaque das gentes – não desjuntando novos dos velhos nem dos assim assim – e o seu facies que nos faz sentir estranhos. Estranhos naquele sitio. Nós não somos dalí. Não desta cidade a aspirar campo por todo o lado. É isso que a falta, a meu ver, para ser uma cidade completa. Libertar-se do campo de uma vez por todas. Mandar todo o campestre para as urtigas. Mas isso é impossível. Mas isso também é o que torna uma cidade destas singular. É por isso é que não é uma capital ... por mais condições, equipamentos, Internet, iniciativas – muito boas por sinal – Braga há-de sempre continuar a sê-lo. E bem! Terá pelo menos até ao fim dos mais velhos – que sempre existirão independentemente da época- que lembrarão como se fala como antigamente, como se fazem as coisas a preceito, ou a arte de bem cascar em quem nós manda.

E por mais familias modernas, e por mais construções – bem edificadas e planeadas – por mais iniciativas desportivas e culturais, Braga está ligada á sua religião e aos seus tempos imemoriais de fundação. Está tudo ligado ao campo também. Tudo se propaga na cara e nos genes dos Bracarenses de gema. Um traço campestre que durante algum tempo irá permanecer na sua vida, até que ninguém mais se lembre destes tempos. Por agora, há que viver esta vida aqui. Aproveitar estes tempos que trouxeram o variado progresso à cidade. Aconchegarem-se do frio, dar azo a uma vida cosmopolita. Mas, de quando em vez, lembrando o traço que os liga a este Minho rural. Quiçá dar um passeio pela história patente na cidade, ou deslizar por esses montes ou então bastar dirigir-se ao mercado ou a lojas agrícolas. Braga é o melhor do rural e do cosmopolita, fundido mas sem embate, que este Minho tem para mostrar.

As gentes... as gentes essas, tirando estas sub-urbanas estendidas que vivem ora uma realidade cosmopolita ora uma realidade, não digo mais rural, mas mais... simples, são do mais emblemático e que de pitoresco se pode ver. Ao fazer esta descrição sinto-me quase como um cientista, parcendo que olho as coisas por cima, desprezando quem observo. Não, as pessoas são mesmo assim: simples, directas e sem subterfúgios. Dizem o que pensam e não tem medo de o dizer. Não tem medo que pareça mal. O que está dito, dito está e mais nada. Vivem do que são e cagam para as aparências. Quem sabe se um dia não possamos todos fazer o mesmo e libertar a cabeça de coisas mais vãs!

Para conheer esta gente, mais velhos e mais novos, que ambos vivem as coisas de maneira diferente, há que fazer por isso, não ficar na cidade, ou, se ao ficar, percorrer as ruas mais antigas e as igrejas. São esses os sítios onde se pode sentir mais a alma e o pulsar destas gentes.

Senão, façam um passeio de autocarro que ligue algumas das cidades circundantes, sempre pelo meio de outras povoações.

De certo que aprendem e adivinham muito mais do que por aí sentados...

Lisboa - Braga

Narrar uma viagem, ou um tempo que se tira, faz lembrar os velhos costumes de escola primária em que o professor pergunta a cada menino e menina o que se fez no respectivo interregno e manda fazer as tão afamadas composições. Nos dias que por hoje passam, em que já volvidos estão cerca de 12 anos da minha 4ª classe, as coisas já são chamadas por outros nomes. Os petizes encontram-se no 4º ano, as composições viraram expressão escrita ou outros nomes porventura mais técnicos e impronunciaveis e o resultado é o mesmo ou pior. Não obstante este aparte, voltemos aos factos. Não é objectivo disto voltar aos bancos de escola, e eu voltar ao menino sabichão com algum vocabulário, mas sim ser uma opinião, uma visão de viagens, terras e sentidos através dos meus olhos, boca, pele, língua e nariz.

O que sinto e como isso me muda, motiva e constroí.

Uma vez com os cintos apertados vamos à descoberta de Braga e arredores...

Estou em Lisboa nos meados de Janeiro e nem o parece. Está o chamado sol de Inverno, aquele que brota no pico da estação fria e que dá aquela brandura ao corpo. Como um amante declarado da ferrovia, decido fazer a minha viagem de comboio, não obstante o transbordo na capital do Norte acrescido de mais uma hora extra de viagem... Mas se se é um fanático pelas máquinas e prazeres obtidos pelas mesmas que rolam sobre os carris, não há sacrifício que esmoreça o impulso frenético que nos é dado.

Da parte inicial da viagem nada demais a assinalar. Lisboa, com os seus orientais subúrbios que num repente nos desfilam pela janela grande da carruagem. Um Intercidades, 2ª classe, nada de grandes pressas ou luxos, que a viagem é para ser apreciada e sentida devagarinho, como quem sorve um charuto precioso, ou como quem degusta uma iguaria sem igual.

A linha do Norte assegura a ligação Lisboa-Porto ( ou Porto-Lisboa, para quem não gosta de se sentir regionalmente excluído) e até às franjas de Aveiro não tem, para mim, muita beleza que se assinale. Os pontos mais fulcrais e que podem, na minha experiência e mente viciada, suscitar momentos belos são as passagens beira Tejo e o troço antes da travessia do Mondego, antes de coimbra-B. A viagem também vive de pessoas. As poucas vivalmas que por aqui e em Caxarias se vêem, saindo do comboio, para irem às suas lides, são pessoas do campo e estudantes. Os estudantes é certo e sabido são dessa cidade estudante. Não é preciso fazer um grande esforço para saber que são os “campónios”. Mas isso não significa que por terem a sua tez do campo, e a sua cara característica de quem nasceu no meio em que nasceu, e que está habituado a prazeres simples, que seja mau e rude e insignificante. Apenas para mim significa que estão demasiado apegados aquela Terra, de tal maneira que ela se reflecte no seu rosto, nos seus hábitos e na maneira de sorrir e de ficar com o rubor característico nas rosáceas assim que a pinga sobe demasiado, ou que porventura o frio estale na cara.

Ao chegar a Aveiro começa-se a sentir os sinais de um grande progresso. Após quase uma hora de caminho sem vivalma, só campos desertos e paisagens acidentadas, sem muito para ver, sente-se o bulício da civilização. E com ele tudo o que de mau e bom isso acarreta. Sinal menos para Estarreja que faz lembrar uma outra Sines. O cheiro a ar pesado que asfixia e torna difícil a respiração. Um odor a enxofre que, se os mais antigos beatos o sentissem, decerto se persignariam receando que a alma lhes fugisse do corpo para as profundezas menos convidativas. Por sorte a paragem aqui é fugaz e a linha permite o embalo que nos leva dali para fora, nem que seja à custa de solavancos tão característicos e reconfortantes.

Avançamos agora para o litoral e quase se sente o seu chamamento salgado, não fossem as janelas estarem fechadas.

Aqui o progresso atinge o seu auge, mas também a sua decadência; bairros de barracas e outras barracas sociais antevêem a chegada a Espinho que é marcada pelo imponente e cúbico edifício do Casino, ali mesmo à mão de semear. Quase que dá a vontade de sair ali mesmo, à bruta, do comboio e ir derreter uns quantos punhados de moedas numa qualquer slot-machine do salão. Mas não, não façamos isso... estragaria o prazer da viagem que não falta pouco estará no seu fim. Mas não um fim desgraçado, trágico e com dinheiro e baba e ranho de sobra. Digamos que um fim apoteótico e extasiante.

À medida que nos aproximamos da antiga Portucalis, mesmo juntinho ao mar e às areias e dunas que com ele confinam na parte Norte de Espinho, avizinha-se ao longe a foz do Douro, numa visão magnífica. São agora quatro e um quarto de uma tarde de meados de Inverno e imaginem um sol que, apesar de fraco, não se dá por vencido, ilumina com a sua luz ténue, ainda amarelada torrada – quase vermelho alaranjado – ao nosso lado esquerdo, enquanto a locomotiva vai comendo de um trago a linha, travessas, cavilhas, brita e tudo mais que lhe vai aparecendo por debaixo dos rodados, alimentos que as carruagens, desprovidas de força vital que as faz andar, agradecem vivamente. A locomotiva, lampeira, também o sabe e, de tempos a tempos, lá solta um silvo ou outro, cada um de seu tom, agudo e grave, grave e agudo quase desfalecidos, ressoando, ecoando, ribombando para trás e para a frente, avisando quem atrás de si vai, que tudo corre bem, e dando sinal a quem na frente vier que vai na galga. A paisagem não podia ser mais animada; o mar no lado esquerdo, rebentando na areia conforme se lhe apraz e a areia, os minusculos grãos que se amontoando, tonelada atrás de tonelada, formam uma linha de costa que se curva. Uma inflexão para o lado esquerdo, até abraçar as àguas do Douro, e a luz que em ambos lhes dá.

Fugidos do encontro das areias e águas, a linha de ferro escapa-se para a direita, mete-se para o interior como um bicho, para só nos fazer mostrar o Douro lá mais à frente. Mas antes, antes até da paragem nas Devesas (Gaia), mais um triste sinal nos aparece. A paisagem urbano-decadente-pós-industrial que tão bem caracterizava a zona Oriental de Lisboa pré-Expo, aqui se repete. Amálgamas de ferro, portas, carros, folhas de ferro ferrugento, caído, abandonado ao Deus-dará.

Sempre que um lisboeta de gema – como eu, embora a gema esteja mais suburbana, o que se reflecte na liquidez da mesma – ouve falar do Porto e suas pontes, e do Porto e suas ruas, ou do Porto e sua frieza monumental, pensa sempre que o Porto não tem nada de especial que o valha. Para quê então trocar a nossa fadista e marialva Lisboa, com o seu Sol e trinado e ruas calorosas, por uma cidade que pelos ditos do povo mais parece um naco frio de comida? E eu vos digo: Entrem na cidade de comboio vindos de Gaia, e logo vêem o esplendor que vos espera.

Á partida das Devesas, vão sentir-se emproados com a visão da velhinha Ponte D. Maria. De tal maneira que vão desejar mais que tudo, atravessá-la. Mas preparem-se para a desfeita. A ponte foi desactivada, pelo que passam por outra mesmo ao lado, novinha me folha, que cumpre a função de vos levar para a outra margem. E que travessia... quem nunca ouviu Rui Veloso falando do Porto numa canção sua? Como lisboeta presunçoso nunca levei muito a sério a letra e os sentimentos aí evocados. No entanto, a experiência que tive fez-me mostrar que tenho que ser menos presunçoso. A sensação da travessia é magnânime, embora dure pouco. O nosso monstro de metal brilhante atravessa a ponte em poucos segundos – para inveja dos automobilistas suburbanos lisboetas – e que segundos!

Lá em baixo um «enorme casario que se estende até ao mar», plantado e quase que sem raízes flutuando nas encostas escarpadas, até me interrogo como ele se mantém ainda assim, lá preso. Para o lado da foz o centro do Porto e outras pontes que unem as margens. Ainda do lado de Gaia da margem, avistam-se umas torres graníticas cimeiras, os inconfundíveis Clérigos, e mais outros que por falta de informação cultural geográfica Portuense não vos sei precisar.

Enfim, a experiência e choque da travessia foi para mim, um ignorante da “magia” Portuense, um bálsamo. Acabada a travessia do pouco largo Douro, a paragem e destino final deste comboio em Campanhã. Aqui o vosso caro tem outro comboio para tomar, e o outro poiso bracarense para continuar a escrita. O café onde estou está muito bom e inspirador. Impõe-se agora outro poleiro de escrita. O frio aperta.

Viajado a 24 Janeiro de 2005