Viagens por aí a dentro

sábado, agosto 06, 2005

Lisboa - Braga

Narrar uma viagem, ou um tempo que se tira, faz lembrar os velhos costumes de escola primária em que o professor pergunta a cada menino e menina o que se fez no respectivo interregno e manda fazer as tão afamadas composições. Nos dias que por hoje passam, em que já volvidos estão cerca de 12 anos da minha 4ª classe, as coisas já são chamadas por outros nomes. Os petizes encontram-se no 4º ano, as composições viraram expressão escrita ou outros nomes porventura mais técnicos e impronunciaveis e o resultado é o mesmo ou pior. Não obstante este aparte, voltemos aos factos. Não é objectivo disto voltar aos bancos de escola, e eu voltar ao menino sabichão com algum vocabulário, mas sim ser uma opinião, uma visão de viagens, terras e sentidos através dos meus olhos, boca, pele, língua e nariz.

O que sinto e como isso me muda, motiva e constroí.

Uma vez com os cintos apertados vamos à descoberta de Braga e arredores...

Estou em Lisboa nos meados de Janeiro e nem o parece. Está o chamado sol de Inverno, aquele que brota no pico da estação fria e que dá aquela brandura ao corpo. Como um amante declarado da ferrovia, decido fazer a minha viagem de comboio, não obstante o transbordo na capital do Norte acrescido de mais uma hora extra de viagem... Mas se se é um fanático pelas máquinas e prazeres obtidos pelas mesmas que rolam sobre os carris, não há sacrifício que esmoreça o impulso frenético que nos é dado.

Da parte inicial da viagem nada demais a assinalar. Lisboa, com os seus orientais subúrbios que num repente nos desfilam pela janela grande da carruagem. Um Intercidades, 2ª classe, nada de grandes pressas ou luxos, que a viagem é para ser apreciada e sentida devagarinho, como quem sorve um charuto precioso, ou como quem degusta uma iguaria sem igual.

A linha do Norte assegura a ligação Lisboa-Porto ( ou Porto-Lisboa, para quem não gosta de se sentir regionalmente excluído) e até às franjas de Aveiro não tem, para mim, muita beleza que se assinale. Os pontos mais fulcrais e que podem, na minha experiência e mente viciada, suscitar momentos belos são as passagens beira Tejo e o troço antes da travessia do Mondego, antes de coimbra-B. A viagem também vive de pessoas. As poucas vivalmas que por aqui e em Caxarias se vêem, saindo do comboio, para irem às suas lides, são pessoas do campo e estudantes. Os estudantes é certo e sabido são dessa cidade estudante. Não é preciso fazer um grande esforço para saber que são os “campónios”. Mas isso não significa que por terem a sua tez do campo, e a sua cara característica de quem nasceu no meio em que nasceu, e que está habituado a prazeres simples, que seja mau e rude e insignificante. Apenas para mim significa que estão demasiado apegados aquela Terra, de tal maneira que ela se reflecte no seu rosto, nos seus hábitos e na maneira de sorrir e de ficar com o rubor característico nas rosáceas assim que a pinga sobe demasiado, ou que porventura o frio estale na cara.

Ao chegar a Aveiro começa-se a sentir os sinais de um grande progresso. Após quase uma hora de caminho sem vivalma, só campos desertos e paisagens acidentadas, sem muito para ver, sente-se o bulício da civilização. E com ele tudo o que de mau e bom isso acarreta. Sinal menos para Estarreja que faz lembrar uma outra Sines. O cheiro a ar pesado que asfixia e torna difícil a respiração. Um odor a enxofre que, se os mais antigos beatos o sentissem, decerto se persignariam receando que a alma lhes fugisse do corpo para as profundezas menos convidativas. Por sorte a paragem aqui é fugaz e a linha permite o embalo que nos leva dali para fora, nem que seja à custa de solavancos tão característicos e reconfortantes.

Avançamos agora para o litoral e quase se sente o seu chamamento salgado, não fossem as janelas estarem fechadas.

Aqui o progresso atinge o seu auge, mas também a sua decadência; bairros de barracas e outras barracas sociais antevêem a chegada a Espinho que é marcada pelo imponente e cúbico edifício do Casino, ali mesmo à mão de semear. Quase que dá a vontade de sair ali mesmo, à bruta, do comboio e ir derreter uns quantos punhados de moedas numa qualquer slot-machine do salão. Mas não, não façamos isso... estragaria o prazer da viagem que não falta pouco estará no seu fim. Mas não um fim desgraçado, trágico e com dinheiro e baba e ranho de sobra. Digamos que um fim apoteótico e extasiante.

À medida que nos aproximamos da antiga Portucalis, mesmo juntinho ao mar e às areias e dunas que com ele confinam na parte Norte de Espinho, avizinha-se ao longe a foz do Douro, numa visão magnífica. São agora quatro e um quarto de uma tarde de meados de Inverno e imaginem um sol que, apesar de fraco, não se dá por vencido, ilumina com a sua luz ténue, ainda amarelada torrada – quase vermelho alaranjado – ao nosso lado esquerdo, enquanto a locomotiva vai comendo de um trago a linha, travessas, cavilhas, brita e tudo mais que lhe vai aparecendo por debaixo dos rodados, alimentos que as carruagens, desprovidas de força vital que as faz andar, agradecem vivamente. A locomotiva, lampeira, também o sabe e, de tempos a tempos, lá solta um silvo ou outro, cada um de seu tom, agudo e grave, grave e agudo quase desfalecidos, ressoando, ecoando, ribombando para trás e para a frente, avisando quem atrás de si vai, que tudo corre bem, e dando sinal a quem na frente vier que vai na galga. A paisagem não podia ser mais animada; o mar no lado esquerdo, rebentando na areia conforme se lhe apraz e a areia, os minusculos grãos que se amontoando, tonelada atrás de tonelada, formam uma linha de costa que se curva. Uma inflexão para o lado esquerdo, até abraçar as àguas do Douro, e a luz que em ambos lhes dá.

Fugidos do encontro das areias e águas, a linha de ferro escapa-se para a direita, mete-se para o interior como um bicho, para só nos fazer mostrar o Douro lá mais à frente. Mas antes, antes até da paragem nas Devesas (Gaia), mais um triste sinal nos aparece. A paisagem urbano-decadente-pós-industrial que tão bem caracterizava a zona Oriental de Lisboa pré-Expo, aqui se repete. Amálgamas de ferro, portas, carros, folhas de ferro ferrugento, caído, abandonado ao Deus-dará.

Sempre que um lisboeta de gema – como eu, embora a gema esteja mais suburbana, o que se reflecte na liquidez da mesma – ouve falar do Porto e suas pontes, e do Porto e suas ruas, ou do Porto e sua frieza monumental, pensa sempre que o Porto não tem nada de especial que o valha. Para quê então trocar a nossa fadista e marialva Lisboa, com o seu Sol e trinado e ruas calorosas, por uma cidade que pelos ditos do povo mais parece um naco frio de comida? E eu vos digo: Entrem na cidade de comboio vindos de Gaia, e logo vêem o esplendor que vos espera.

Á partida das Devesas, vão sentir-se emproados com a visão da velhinha Ponte D. Maria. De tal maneira que vão desejar mais que tudo, atravessá-la. Mas preparem-se para a desfeita. A ponte foi desactivada, pelo que passam por outra mesmo ao lado, novinha me folha, que cumpre a função de vos levar para a outra margem. E que travessia... quem nunca ouviu Rui Veloso falando do Porto numa canção sua? Como lisboeta presunçoso nunca levei muito a sério a letra e os sentimentos aí evocados. No entanto, a experiência que tive fez-me mostrar que tenho que ser menos presunçoso. A sensação da travessia é magnânime, embora dure pouco. O nosso monstro de metal brilhante atravessa a ponte em poucos segundos – para inveja dos automobilistas suburbanos lisboetas – e que segundos!

Lá em baixo um «enorme casario que se estende até ao mar», plantado e quase que sem raízes flutuando nas encostas escarpadas, até me interrogo como ele se mantém ainda assim, lá preso. Para o lado da foz o centro do Porto e outras pontes que unem as margens. Ainda do lado de Gaia da margem, avistam-se umas torres graníticas cimeiras, os inconfundíveis Clérigos, e mais outros que por falta de informação cultural geográfica Portuense não vos sei precisar.

Enfim, a experiência e choque da travessia foi para mim, um ignorante da “magia” Portuense, um bálsamo. Acabada a travessia do pouco largo Douro, a paragem e destino final deste comboio em Campanhã. Aqui o vosso caro tem outro comboio para tomar, e o outro poiso bracarense para continuar a escrita. O café onde estou está muito bom e inspirador. Impõe-se agora outro poleiro de escrita. O frio aperta.

Viajado a 24 Janeiro de 2005